07/12/2011

Porto Editora - "Porto de Encontro" com Rentes de Carvalho | 10 de dezembro de 2011‏

A Porto Editora e o jornalista Sérgio Almeida têm o prazer de convidar para a segunda edição de Porto de Encontro – À Conversa com Escritores, com José Rentes de Carvalho, no dia 10 de dezembro, às 18:00, na Biblioteca Municipal Almeida Garrett, aos Jardins do Palácio de Cristal.










"Escrito em 20 de Out. de 1997, para ser publicado em tradução inglesa no livro "Europe - Experience & Expectation" (ISBN 90-803956-1-7) que será oferecido a Jacques Delors por ocasião da atribuição do "Prémio Erasmus" em Amsterdam, no palácio do Dam, em 26 de Novembro de 1997.

EUROPA RICA, EUROPA POBRE
J. Rentes de Carvalho

Para quem, como eu, durante a maior parte da sua vida conheceu o incómodo e algumas vezes o medo fundado, de na Europa atravessar fronteiras, o passar por elas sem guardas nem controlos é ao mesmo tempo, e curiosamente, motivo de júbilo e ocasião de desconforto.

Por certo, tal como ela aspira, a Europa poderá vir a tornar-se una e unida, aberta a todos, mas por enquanto é ainda uma união de discordâncias e interesses desequilibrados, forças que puxam em direcções que, ora são opostas, ora desencontradas.

Nela, pois, ao atravessar hoje as fronteiras que antigamente a dividiam, o primeiro pensamento que me ocorre é de que só o posso fazer com tanta facilidade porque em parte nenhuma procuro trabalho, em parte nenhuma necessito de me estabelecer, e as economias que tenho no banco garantem que não serei estorvo para ninguém.

Situação idêntica é a dos cerca de doze mil holandeses que, gozando uma vida de conforto, actualmente residem em Portugal. Porém, se um número igual de compatriotas meus, querendo viver de imediato o sonho europeu, pretendesse estabelecer-se na Holanda para, à custa de trabalho, prepararem também um futuro confortável, encontrariam hermeticamente fechadas as mesmas fronteiras que, sem entraves, se abrem para os abastados.

Bem sei que nada é tão simples como eu desejaria que fosse. A economia tem os seus dogmas, a política tem as suas leis, a burocracia as suas artimanhas. E devo igualmente conceder que não é de um dia para o outro que se podem construir os alicerces de uma União Europeia sólida bastante para suportar, sem abalo, os embates das ambições dos países que nela são ricos, da voracidade dos países que nela são pobres, do nacionalismo de uns, da corrupção de outros, das forças que se lhe opõem de fora e daquelas que a minam por dentro.

Sem dúvida foram dados passos largos, como se constata na cooperação científica, na dinamização dos mercados, das finanças, na melhoria dos transportes e das comunicações. O mesmo é válido para a cultura - tratada agora como mercadoria! - que vai sendo espalhada por um número crescente de "consumidores". E se é muito o que dentro e fora da União Europeia me preocupa, não vejo razões para temer que ela concorra para que o meu país perca a sua identidade ou que a minha língua venha a ser "afogada" por estrangeirismos, pois ao longo de quase nove séculos uma e outra provaram ser capazes de resistir em circunstâncias mais desfavoráveis a ameaças mais sérias. Aliás, não raras vezes se confunde perda com evolução, julga-se que desaparece aquilo que simplesmente se transforma.

Simples cidadão, a minha capacidade de análise económica e social da Europa é forçosamente limitada. Qualquer eurodeputado rebaterá sem esforço as conclusões a que chego, baseando-se em estudos e estatísticas, ou acenando com argumentos sobre os objectivos que, quanto mais se aproximam do ideal, mais tempo necessitam para serem alcançados.

Por outro lado, não é menos verdade que a Europa que hoje temos vai descartando alguns dos ideais com que nos acenaram os seus fundadores. Mas dado que de modo geral a memória colectiva é provadamente curta, talvez seja essa a verdadeira função dos ideais económicos e políticos: o servirem de chamariz. Todavia, para quem nele atenta com interesse, o desenvolvimento europeu parece processar-se com desigualdades de mau agouro.

A longa ditadura fascista, uma custosa guerra colonial e o desequilíbrio causado pelo retorno da democracia em 1974, tinham deixado Portugal perto da ruína quando em 1986 ingressou na Comunidade Económica Europeia. O seu orçamento oscilava então nos limites do de um país do terceiro-mundo, mas passados onze anos nota-se que, do ponto de vista material, as felizes consequências desse ingresso só encontram paralelo nas do período áureo dos Descobrimentos, quando Portugal se tornou grande potência.

Ao ouro e às especiarias de então, substituem-se hoje os subsídios comunitários. O país transformou-se num enorme estaleiro e Lisboa, como tradicionalmente, chama a si a parte leonina dos benefícios e dos projectos. É, contudo, inegável que um pouco por toda a parte se vai melhorando a infraestrutura das comunicações, que aqui e ali surgem bairros, pontes, se constrói e se renova.

Porém, não é apenas sobre a espectacular entrada de grandes capitais e a realização de melhoramentos que se podem traçar paralelos com o Portugal do século dezasseis. Incómodas, senão perturbantes, são as similitudes sociais e políticas entre o país actual e o do passado. As especiarias e o ouro eram nesse tempo, como os subsídios o são agora, a principal fonte de receita do país. Fontes aleatórias, por não dependerem de um esforço de produção ou de um planeamento, mas de situações circunstanciais e, em ambos os casos, sujeitas a influências e interesses que de longe excediam, e excedem, os de Portugal como nação.

Evidentemente que a União Europeia quer ser, pelo menos em teoria, o amplo regaço maternal que acolhe os países, sem fazer distinção dos meios nem da importância de cada um. Na prática, todavia, e mau grado os processos democráticos, constata-se uma dolorosa diferença entre o tratamento de favor reservado à riqueza de uns e as condicionantes postas à penosa situação económica dos outros.

Poder-se-á argumentar que tanto o favoritismo como as condicionantes não são fruto de qualquer má vontade, mas simples consequência da aplicação das leis económicas que tudo regem. E que a burocracia não funciona segundo o bom senso, mas de acordo com regras que, a priori, não têm como finalidade o bem comum. Mas são sobretudo as consequências dessa "despersonalização" do poder que me tornam céptico quanto à posição do meu país dentro da União Europeia.

Não duvido de que a torneira dos subsídios continuará aberta, pelo menos durante algum tempo, e que daí ocorrerão benefícios. Todavia, se considero a evolução de Portugal durante a última década, logo a pergunta se põe: benefícios para quem? E a resposta é a mesma que se dava no século dezasseis: benefícios para os detentores do poder. Nesse tempo a casa real e a nobreza, hoje os políticos, os burocratas e a burguesia.

Não se veja neste desabafo uma qualquer nostalgia saudosista, dessas que pintam de lindas cores o passado e ilustram o presente com sombras negras. Bem ao contrário. Desde 1986 as condições económicas das classes menos favorecidas certamente melhoraram em Portugal. Essa melhoria, porém, só aparece como tal quando comparada à situação desastrosa em que o país anteriormente se encontrava, e torna-se diminuta quando medida pela escala europeia.

Actualmente, o salário que um jornaleiro português recebe por dia de trabalho, em pouco excede o que é pago por hora a um operário da Europa rica. Desde o século dezasseis, contudo, nunca em Portugal se viu semelhante ostentação do luxo. Mas embora o parque automóvel do país tenha aumentado de trinta por cento em quatro anos, esse "progresso" não consegue eliminar a realidade de que demorará muito antes que as carroças e os burros continuem a ser o único meio de transporte de muitos.

As pensões de velhice, de invalidez, e os subsídios de desemprego, são em Portugal uma migalha, enquanto burocratas e políticos não escondem o receberem - dentro da legalidade - às três e quatro chorudas pensões de reforma.
Os cuidados médicos são largamente insuficientes, o nível do ensino assustador, a pobreza uma constante. Em certos distritos de Trás-os-Montes e do Alentejo o despovoamento ultrapassa os vinte e cinco porcento. As aldeias vão sendo abandonadas e em proporção idêntica aumentam os bairros de lata em torno das cidades. Com um desleixo total pelas consequências sociais e os irreparáveis danos causados ao meio ambiente, os campos de lavoura foram transformados em gigantescas plantações de eucaliptos que alimentam as fábricas de celulose. E àqueles que tomaram essas medidas, pouco interessará saber que as vagas de suicídios entre os aldeãos do Alentejo são hoje endémicas e que o desgaste causado pelos eucaliptos num solo já de si pobre, resultará numa ameaça concreta de desertificação.

Historiadores e economistas dirão que desde o começo do mundo o bem-estar de uns infalivelmente acarreta o mal-estar de outros. Mas se é certo que a União Europeia não foi criada com a finalidade de desarraigar de vez a pobreza no continente, não é menos válido afirmar que nalguns dos seus países cada dia se torna mais gritante a diferença entre a miséria de uns e a opulência doutros, entre o conforto dos ricos e o desespero dos necessitados.

Cabe a culpa disso a Bruxelas? Talvez não. Cabe a culpa então aos governos dos países? Talvez sim. Também se poderá dizer que não é questão de assacar culpas. Que de momento nos achamos em situação transitória. Que a verdadeira, a boa, a perfeita União Europeia forçosamente demorará muitas décadas a realizar. Que o progresso de amanhã compensará largamente os sacrifícios que se pedem hoje. Que devemos atentar menos nas deficiências e nos obstáculos, e pôr os olhos no futuro risonho que, ricos ou pobres, é nossa obrigação construirmos juntos. Ao fim e ao cabo, na vida de cada um de nós, como na União Europeia ou nos países singulares que a formam, a realidade talvez tenha de ser assim. Com momentos maus e momentos bons, pobretanas e nababos, desilusões e esperanças. Pessoalmente, o meu sonho europeu era como cabe nas visões: repleto de belas imagens de solidariedade, bem-estar, alegria, progresso, bandeiras desfraldadas, pão partilhado. Só que, à semelhança doutros sonhos que tive, também esse ameaça esvanecer, deixando-me rodeado de ilusões moribundas e esperanças mal cumpridas. Felizmente, por entre estas últimas, fura de vez em quando um raio de sol."

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